Jean-Yves Leloup
Os Pés - Anamnese Física
Em um primeiro trabalho de anamnese física nos é pedido que observemos como estamos sobre nossos pés, durante uma semana mais ou menos, porque este estudo requer tempo e atenção. Verificar se nossos pés são locais de problemas para nós. Se recebemos ferimentos ou golpes nesta parte do corpo, em qual momento, em qual circunstância. E que marcas físicas, que fragilidades, estes ferimentos deixaram em nosso corpo.
Em seguida, observaremos nossa relação com o odor que emana de nossos pés. O cheiro dos nossos pés é agradável ou desagradável? Vocês sabem que há crianças que têm uma verdadeira paixão pelos pés. E certas mães adoram “comer” os pés de seus filhinhos. Cada um tem relações bem diferentes com o gosto, o cheiro e a sensação dos pés.
Em francês há uma expressão; savoir prendre son pied, que, traduzida literalmente, quer dizer “saber segurar seu pé”. Esta expressão significa a capacidade que temos de sentir prazer. Há entre nós pessoas que nunca sentem prazer. O prazer para elas é algo muito difícil. Se estas pessoas não “seguram seu pé”, há outras, entretanto, que só pensam em segurá-lo... Portanto, esta faculdade de sentir prazer, ou não, é um fato a ser observado. É uma questão tão simples, tão banal, mas ao mesmo tempo tão fundamental! Será que experimentamos prazer em estarmos sobre a terra? Ou não experimentamos nenhum prazer? Esta é uma pergunta a fazer aos nossos pés.
Os Tornozelos
Continuemos nossa exploração, nossa escuta do corpo, estudando os tornozelos.
O tornozelo é importante por ser a primeira articulação e todas as demais articulações são importantes porque delas depende a harmonia e a livre circulação da energia entre as diferentes partes do nosso corpo. Assim, devemos dar uma atenção particular a todas elas: tornozelos,joelhos coxo-femurais, punhos, cotovelos, etc.
Anamnese Física e Psicológica
Em um primeiro momento de anamnese física, lembraremos se esta articulação esteve sempre bem ou mal, em sua rigidez ou flexibilidade, e se teve entorses freqüentes. Como ocorreram as entorses? Estaremos atentos a estes acontecimentos que marcaram e se inscreveram nesta parte do nosso corpo. É como se fizéssemos uma espécie de diagnóstico, a partir de todos os acontecimentos que marcaram o tornozelo.
Após a anamnese física, podemos entrar na anamnese psicológica lembrando, rememorando, o momento do nascimento. Porque este momento é também um momento de articulação. Articulação entre a vida intra-uterina e a vida extra-uterina Às vezes temos memórias difíceis. Alguns de nós conheceram dificuldades neste elo que une a vida fetal com a Vida no espaço-tempo, no mundo exterior. E nosso corpo guardou a memória desta dificuldade deixando uma fragilidade na articulação do tornozelo.
Falamos anteriormente da pessoa que não foi desejada, que não foi esperada. Neste caso, ela consegue manter-se de pé, mas terá dificuldades em dar um passo a mais, em avançar, em andar. Consideramos espiritualidade aquela do peregrino de São Tiago de Compostela e que consiste em dar um passo a mais. No lugar onde estamos, pouco importa se seguimos ou não adiante, não temos que julgar. O essencial é darmos um passo a mais. Assim, algumas pessoas que julgamos espiritualizadas podem não ter caminhado muito. E outras, que julgamos não espiritualizadas, deram muitos passos.
Portanto, dar um passo a mais. Ir além dos nossos limites. Ir além do Ego.
Algumas vezes este medo de dar um passo a mais tem suas raízes na hora do nascimento. É que este passo a mais, este passo adiante para sair do útero, foi difícil e traumático. Neste caso, a anamnese psicológica deverá ser aprofundada.
Anamnese Espiritual
Na anamnese espiritual, podemos evocar agora a simbologia do tornozelo. Entre os chineses, a finura do tornozelo simboliza o refinamento na vida e, também, nas relações íntimas e sexuais.
O tornozelo, além de ser uma articulação do nosso corpo, simboliza nossa articulação com o outro e também com o Todo-Outro.
Na mitologia grega e romana o tornozelo é o ponto onde as asas se prendem. Já falamos dos pés alados de Hermes, dos pés alados de Mercúrio, que simbolizam a articulação da terra com o céu. A articulação do nosso ser material com o nosso ser espiritual. Um símbolo de elevação e de sublimação. Mas, por vezes, as asas não podem ser enxertadas em nossos pés porque temos os tornozelos inchados e doentes.
O Mito de Édipo
Falaremos de Édipo, que tem os pés doentes, os tornozelos inchados. Alguns dizem que seus tornozelos são furados. Este mito é bem conhecido e interpretado no mundo da psicanálise e proporemos aqui outras interpretações possíveis. Mas em qualquer interpretação proposta, trata-se sobretudo de cuidar dos nossos pés, dos nossos tornozelos, para que eles possam reencontrar suas asas. Poderemos, então, caminhar sobre a terra com os pés leves, com os pés alados.
Conto-lhes o mito de Édipo em sua inteireza , porque Freud detém-se apenas em algumas etapas desta estória.
Édipo é filho de Jocasta e de Laio, rei de Tebas. A palavra Laio quer dizer canhoto. Édipo é neto de Labdacos que significa coxo. E Labdacos é neto de Cadmo, fundador cio cidade de Tebas, cidade santa dos gregos.
Laia e Jocasta são um casal estéril, não podem ter filhos. Por isso vão em peregrinação a Delfos, consultar o oráculo de Apolo. Também nós, quando não compreendemos o que nos acontece, procuramos um intermediário que possa dar sentidoà nossa existência.
O oráculo dá a Laio e a Jocasta o sentido ele sua esterilidade. Diz-lhes que terão um filho. Que este filho matará seu pai e desposará sua mãe. O oráculo de Delfos será um terapeuta para eles. É esta parte do mito que conhecemos melhor.
Algum tempo depois de sua volta, Jocasta dá à luz a um menino. Logo após seu nascimento, Laio lembra com horror da profecia e quer afastar seu filho para que o terrível destino não se cumpra. Entrega-o a um pastor que perfura seus pés e o suspende pelos calcanhares em um arbusto da floresta, exposto aos animais selvagens.
A criança é recolhida por pastores de Corinto, que tiveram compaixão dele e de sua ferida nos pés. Chamaram-no Édipo, que significa “o de pés inchados”. Confiam Édipo ao rei e à rainha de Corinto. Adotado pelos soberanos, cresce e vive com eles até o dia em que sente não pertencer à mesma raça. Sai então de Corinto em busca do segredo de seu nascimento, em busca de suas raízes.
Sempre este mesmo questionamento. De onde eu venho? Quais são minhas raízes? Quem são meus pais verdadeiros? Qual é o segredo do meu nascimento’?
E Édipo vai, também, partir para Delfos. Vai interrogar o seu inconsciente. Vai pedir uma informação, uma palavra sobre o seu segredo. Vai escutar o oráculo e o seu destino. O oráculo lhe diz que ele matará seu pai e casará com sua mãe. Édipo se desespera, pois os pais que conhece são os reis de Corinto. Temendo a realização da profecia, não volta mais àquela cidade.
Édipo recusa a previsão, recusa o seu destino. E, recusando o seu destino, ele o cumpre. Para nós, esta é uma informação importante. Quando recusamos nosso destino, nosso código genético, o programa que está inscrito em nossos genes e em nossas células, ao invés de evitarmos o destino, ativamos a sua realização. Veremos, dentro em pouco, que uma etapa importante no caminho iniciático de Édipo é a aceitação de seu nascimento. É a aceitação do programa, do destino que lhe foi traçado.
Mas, neste momento, Édipo recusa e foge. Sem saber ele toma a estrada que vai a Tebas. Tebas está sendo devastada por um monstro que, sobre um rochedo, guarda suas portas. O monstro devora as pessoas que se apresentam e não respondem ao enigma que ele lhes propõe.
Este monstro é a famosa Esfinge, masculina-feminina, da qual nos fala freqüentemente Pierre Weil. Na estória de Édipo, trata-se de um monstro que devora.
Laio, rei de Tebas e pai verdadeiro de Édipo, dirige-se a Delfos para consultar o oráculo de Apolo e compreender o que está acontecendo à sua cidade. Neste momento, Édipo se aproxima de Tebas. Os dois se cruzam em um caminho estreito e profundo, entre montanhas. Fugindo um do outro, acabam por se encontrar. O carro do rei esmaga o pé de Édipo(novamente o pé) que, furioso, volta-se contra o cocheiro e seu senhor e mata a ambos. Assim, Édipo mata seu pai.
Édipo continua seu caminho sem saber que uma parte do seu destino se cumpriu. Ele matou seu pai. Chegando à cidade de Tebas, tem conhecimento de que o rei está morto e que a rainha Jocasta promete sua mão e sua coroa a quem livrar Tebas do monstro. Édipo vai enfrentar a Esfinge, que é um tetramorfo com os pés de touro, o corpo de leão, as asas de águia e um rosto andrógino.
Em algumas catedrais romanas, representa-se freqüentemente o Cristo, cercado por um tetrarmorfo. O tourorepresenta o evangelista Lucas e também o enraizamento na terra. O ensinamento de Cristo propagado por toda a terra. Oleão representa o evangelista Marcos e no seu Evangelho há fogo, paixão e muitos exorcismos de demônio. Ao lado da terra há estes símbolos do fogo e do leão. O evangelista Mateus está representado por um andrógino, homem-mulher. Vale ressaltar que o Evangelho de Mateus relata muitas discussões entre Jesus e os rabinos de sua época, com toda uma dimensão racional, portanto. O quarto elemento do tetramorfo, a águia, representa o evangelista João. E o Evangelho de João é um convite à contemplação e à vida mística. No meio do tetramorfo situa-se o Cristo, como a quintessência.
Se os primeiros cristãos escolheram estes quatro Evangelhos entre 70 ou mais que existiam, é porque estes quatro Evangelhos tinham uma função de integração. Talvez tenhamos perdido este sentido, esta função de integração dos quatro Evangelhos. É por isso que hoje. para conhecer Aquele que está no centro, talvez tenhamos necessidade de sete Evangelhos, adicionando aos quatro primeiros, os Evangelhos de Tomé, Felipe e Maria Madalena. Assim a visão de Cristo será para nós mais profunda e mais ampla. Não é por acaso que estes três últimos Evangelhos foram recentemente descobertos.
Fizemos um parêntesis para lembrar que a Esfinge é, também, encontrada na tradição cristã, sob a forma de tetramorfo. Esta Esfinge que Édipo deve enfrentar é o nosso trabalho de integração dos quatro elementos: a razão, o sentimento, a intuição e a sensação. É um terna junguiano que vocês conhecem bem.
A Esfinge propõe a Édipo o enigma: “Qual é o animal que pela manhã tem quatro pernas, ao meio-dia tem duas e ao entardecer tem três?”. É o homem , responde Édipo, ‘‘que na infância se arrasta sobre pés e mãos, na idade adulta anda sobre suas duas pernas e na velhice recorre ao auxílio de um cajado que lhe serve de terceira perna”.
Costumamos fazer esta mesma pergunta a nossos filhos e todos nós também conhecemos a resposta. Mas a resposta, no mito, é todo um caminho de transformação porque, se a questão é: “O que é o homem?”, a resposta é: “É o tornar-se este homem.”
Na simbologia temos o quatro, que é um símbolo da unidade animal, da unidade indiferenciada. É preciso passar em seguida para o dois, a dualidade, experienciar a diferenciação antes de chegar ao três, às três pernas que simbolizam a unidade diferenciada.
E Édipo responde assim a esta questão. Ele sabe que a resposta está nele mesmo. Que o homem tem esta capacidade de encontrar-se e de tornar-se. Neste momento, a Esfinge passa seu poder a Édipo e, tomada de vergonha e desespero, atira-se do alto do rochedo. Édipo entra em Tebas e desposa a rainha Jocasta. Novamente o destino se cumpre e Édipo desposa sua mãe. Da sua união com Jocasta nascem quatro filhos: as gêmeas Etéocles e Policine e as filhas Antígone e Ismênia.
Édipo é um rei bom e justo, amado de seu povo. Tempos depois, uma epidemia se abate sobre a cidade e nada há que a detenha. A população de Tebas diminui e torna-se estéril. O rei de Tebas quer saber a causa da infelicidade que atinge o seu povo. Consulta o sábio Tirésias, que é um homem cego mas dotado de grande visão interior. Tirésias revela-lhe a verdade. Diz-lhe que seu pai era o rei de Tebas que ele encontrou e matou naquele caminho estreito. E que a rainha Jocasta é sua mãe.
Jocasta, tomada de desespero, se enforca. Édipo, após ver a terrível cena, vaza seus próprios olhos. Ele deseja entrar em uma outra visão, adquirir uma nova lucidez. Com o auxílio de Antígona, sua filha mais velha, vai a Delfos encontrar o oráculo de Apolo. Este lhe diz que os deuses reconhecera que ele pecara contra sua vontade e que, depois de muito tempo, quando chegasse à terra do seu destino, encontraria um relógio junto às Eumênides e seria absolvido. Assim, Édipo deixa Tebas, seu trono, seu país e é guiado em seu caminho por Antígona. Começa, para ele, a viagem noturna em direção à Ática.
Enquanto isso, Etéocles e Palinice dividem a trono, lutam entre si e se matam. Édipo e Antígona chegam ao santuário das Eríneas, em Colona. As Eríneas são deusas com cabelos de serpente e guardiães dos infernos. Estas mesmas deusas, se não nos causam medo, são chamadas Eumênides. Elas são a mesma realidade com dois nomes diferentes, segundo a nossa reação. A repulsa pelo inferno e a atração pelo paraíso. Édipo reconhece que alcançou o seu objetivo e que seu fim está próximo. O rei dessa região é o grande herói Teseu.
Édipo passa além da repulsa e da atração, além das Eríneas e das Eumênides. Acompanhado por Teseu e caminhando ereto, como se enxergasse, Édipo atravessa aquela região sagrada até chegar a uma grande rachadura na terra, fechada por uma porta de bronze. Lava-se de toda a sujeira, do pó dos caminhos e veste uma roupa bordada. Neste momento, sob aprofundo silêncio da natureza, Édipo é introduzido na morada de Deus. Ele não é apenas um rei terrestre, mas entra no reino do Espírito, no reino do Ser em si mesmo.
Este é o mito tal qual nos contam. Esta estória pode nos parecer muito longínqua. Podemos repassá-la a nossos filhos ou podemos contá-la para nós mesmos. É uma estória dramática da qual Sófocles (496-406 a.C.) escreveu uma bela tragédia chamada Édipo-Rei.
A psicanálise interessou-se por todos estes mitos porque cada um dos heróis e personagens representa estados de consciência. Vocês conhecem a interpretação universal de Freud para o mito de Édipo na qual toda criança é atraída pelo sexo oposto. O menino, por exemplo, deseja casar com sua mãe e matar seu pai. Deseja matar o que faz obstáculo à sua união com a mãe.
A leitura freudiana do mito de Édipo foi muito contestada por mitólogos e etnólogos, entre eles Lévi-Strauss. Porque este mito não funciona da mesma maneira em todas as culturas e há outros modos de interpretá-lo.
Uma Releitura do Mito de Édipo
Proponho-lhes uma releitura do mito de Édipo, mais junguiana e transpessoal, que veja em Édipo o herói ao mesmo tempo infeliz e corajoso que, através das provações, torna-se o verdadeiro rei de si mesmo. Acrescentamos o mito do velho rei que é preciso matar a fim de que o jovem rei, o filho de Deus, possa nascer. É todo um caminho de vida, de transformação.
O primeiro passo, a primeira articulação, é aceitar a programação que nos foi dada por ocasião do nosso nascimento.Aceitar nosso código genético, nossa herança. Conhecer nosso programa, o programa de nossa existência. E, diante desse programa, diante dessa herança, podemos fugir, recusar e podemos nos submeter e aceitar. Porque aceitar é mais que se submeter. E, finalmente, podemos escolhê-lo.
O caminho de Édipo é a passagem de uma vida submissa a uma vida escolhida. Então, o primeiro passo é dizer sim ao seu não. Dizer sim ao seu nome. Dizer sim ao seu medo. Dizer sim ao seu desejo de fugir. Dizer sim à recusa do seu destino. Dizer sim à sua negação. E então descobrir o seu nome verdadeiro.
“O homem se afirma à medida que se opõe”, diz Hegel. Ele afirma a sua identidade, opondo-se inicialmente a ela. Esta é a primeira etapa de Édipo - o momento em que ele, de certo modo, é obrigado a aceitar o seu destino, seu código genético, seu futuro.
A segunda etapa é matar seu pai. Na visão junguiana, a sombra que cada um traz em si mesmo é de sexo igual ao seu. A sombra, para uma mulher, é sua mãe e a sombra, para um homem, é seu pai. Quer dizer que para encontrar o outro e o Outro Sexo, com alteridade em verdade, temos que fazer a travessia da imagem inconsciente do homem ou da mulher de mesmo sexo que o nosso. O assassinato do pai simboliza aqui a possibilidade de ultrapassar a imagem do homem ou da mulher que temos dentro de nós, a sombra inconsciente que, por vezes, nos impede de encontrar a alteridade do outro. Matamos o igual para podermos encontrar o outro. Matar, neste caso, tem o sentido de transformar.
A terceira etapa é desposar a mãe. E compreender que esta diferenciação não é uma separação mas uma aliança. Trata-se de esposar sua origem e reconciliar-se com ela, indo além das imagens mais ou menos aterrorizantes que temos dessa origem. Esposar sua mãe é esposar suas raízes. É esposar sua terra, é ter a humildade de esposar seu húmus.
Resumindo, a primeira etapa é a da unidade indiferenciada. É a unidade do animal com a natureza e o meio ambiente. A segunda etapa é a etapa da dualidade, da diferenciação. Neste 1=2 vocês encontram o processo de individuação da psicologia junguiana. A terceira etapa é a etapa da aliança, que é a unidade diferenciada. Então temos que estabelecer o elo e ligar na primeira etapa, desligar na segunda etapa, destacar e aliar na terceira etapa. Observem o esquema e creio que compreenderão melhor.
Passamos então à quarta etapa que é responder à Esfinge. E a resposta que Édipo dá à Esfinge é que o homem é este caminho que passa da unidade indiferenciada, através do conflito, através da dualidade. O caminho feito com estas pernas que andam com dois pés, antes de caminhar com três pés. É semelhante à estória de um amor, no qual, no início, andamos bastante com quatro patas em um estado de fusão, de mistura. Em seguida, como casal, andamos com dois pés e cada um de nós é ele mesmo. Freqüentemente há oposição e conflito, pois cada um quer se afirmar em sua diferença. Finalmente há a terceira etapa do amor, quando caminhamos com três pés. Porque descobrimos que o amor é o terceiro entre nós. E que este amor não depende de mim nem de você. Mas é uma presença, um cajado, um elo entre nós.
Portanto, esta é a quarta etapa no caminho de Édipo, que ultrapassa aquelas etapas definidas por Freud. Não se trata somente de matar seu pai e desposar sua mãe. A motivação profunda de nossa existência não é somente a pulsão sexual que experimentamos quando criancinhas em relação ao nosso pai e à nossa mãe. Ultrapassamos estas etapas e vamos em direção a esta individuação, a este tornar-se.
Chegamos à quinta etapa, encontrando Tirésias, o sábio cego. É quando Édipo entra em um momento muito importante de sua existência, o estado da maturidade e da lucidez. Ele Viveu o seu destino. Ele viveu o programa natural que estava inscrito nele e aceitou que este programa fosse dramático.
Agora, ele pode vazar seus olhos. Pode abrir seus olhos a um Outro olhar. Pode abrir em si mesmo um olhar interior e não julgar sua vida somente a partir de um olhar exterior. Pode colocar sobre os acontecimentos um olhar que vem de uma Outra luz. Uma luz que brilha mesmo dentro da noite.
E, então, chegamos à sexta etapa que é este caminho noturno onde Édipo será guiado por Antígona. Antígona, neste contexto, representa a Anima e a intuição. A partir de agora ele não procura mais explicar sua vida, justificar sua vida. Segue somente, minuto após minuto, um passo atrás do outro, uma vez que não pode enxergar o exterior. Édipo vê com seus pés. Seus pés tornam-se videntes e ele se deixa guiar pela intuição. Em nossa vida, esta é uma etapa importante a conhecer.
Neste momento, paramos de dar explicações sobre nossos atos, sobre o que nós fazemos. Paramos de nos justificar. Mas, um passo após o outro, mesmo se não somos compreendidos, continuamos nosso caminho, fiéis à nossa visão interior, à nossa intuição profunda.
Na sétima etapa, Édipo vai ao encontro das Eríneas e Eumênides, aquelas deusas que simbolizam o inferno e o paraíso. São dois estados de consciência, uma consciência beatífica, bem-aventurada, que se chama paraíso, e uma consciência fechada, limitada, que se chama inferno, confinamento. Édipo vai passar além da atração e da repulsão. Não procura mais um estado de consciência pessoal, bem-aventurado. Torna-se livre em relação ao bem e à felicidade e, ao mesmo tempo, não tem mais medo do juízo, do julgamento. Ele ultrapassa o bem e o mal.
Édipo vai além do que se chama paraíso e inferno. Não procura mais um estado de consciência pessoal. Entra no reino do real. E esta é a oitava etapa. O mito nos conta que, depois desta passagem para além da atração e da repulsão, Édipo entra no Reino de Deus que é o reino do coração e da inteligência apaziguada. Entra no reino do Self onde o Ego ultrapassou todas as etapas, por vezes dolorosas, para tornar-se ele mesmo, para tornar-se capaz de encontrar o outro em sua alteridade. Édipo abriu-se a uma outra visão. Para tornar-se livre, abriu-se ao transpessoal e passou para além das atrações que os amigos do transpessoal buscam, algumas vezes.
O caminho de Édipo é, verdadeiramente, o caminho da liberdade total. E esta liberdade total é marcada pela presença do Reino. Pelo reino de Espírito dentro dele. Assim, Édipo segue o caminho que vai dos pés inchados aos pés alados. De igual modo, partimos de nossos pés pesados, pesados de memória, como se tivéssemos um fardo de memórias para carregar conosco. Alguns de nós sentem, ainda, que este fardo de memórias lhes entrava a marcha e lhes impede o caminhar. Neste ponto, existem separações e transformações a viver, para que nossos pés se tornem livres e para que encontremos nossas asas. Para que, como seres humanos, reencontremos nossa dimensão divina.
Esta oitava etapa tem talvez uma interpretação diferente daquelas que vocês conheceram ou escutaram, mas ela respeita bem o desenvolvimento da estória sobre o mito de Édipo, do início ao fim. Na maioria das vezes, interpretamos uma única parte deste mito. Esquecemos Tirésias, esquecemos esta passagem para além dos estados de consciência, felizes ou infelizes. Não seguimos Édipo como herói, mas o Ego em marcha para o reino do Self.
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