A matriz peitoral, mais interiorizada, é o território do coração, da força de vontade, do desejo, do sopro e da palavra criadora. Porém, o peito e o ventre compartilham suas respirações, sendo o primeiro de ordem superior e o segundo de ordem inferior.
O rito do batismo cristão incorporou parte da riqueza simbólica do rito da circuncisão e da purificação, associado aos da nomeação, apresentação e identificação da criança. Durante milênios, as comunidades judaicas e cristãs organizaram fórmulas, gestos e ritos capazes de conferir ao recém-chegado uma poderosa e transformadora experiência iniciática. A progressão autônoma da vida através das matrizes abdominal, peitoral e craniana é ritualizada ao longo da cerimônia do batismo com uma simboloterapia.
Ao trabalhar com os elementos cósmicos – terra, água, fogo e ar -, o rito do batismo cristão (1) realiza nos participantes uma distribuição generosa da força vital da Graça de Deus e do significado ontológico das leis inscritas no humano.
Do sólido ao liquido, ao gasoso e ao energético: os passos do batismo transmitem, pelo poder dos símbolos, formas de energia cada vez mais sutis e fundamentais para o batizado e sua família. Em seu crescimento, pela Arvore das vidas, o humano passará por várias matrizes: a uterina, a abdominal, a peitoral e a craniana. Esse itinerário simbólico corresponde a uma progressão do sólido para o liquido, do liquido para o gasoso e o energético, associações que o rito católico do batismo retoma de forma concisa, sinfônica e extraordinária.
( 1). Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, Ritual do Batismo de crianças. Edições Loyola, São Paulo 1999.
A matriz uterina é um território úmido da inconsciência. Ao nascer, saímos de uma matriz abdominal e caímos em outra, a da casa familiar. Nessa casa, teremos nosso pão de cada dia. Para viver, nossa matriz abdominal precisa de alimentos sólidos, de pão. ‘’Teu abdômen é um monte de trigo cercado de lírios’’, dirá o poeta sobre sua amada (Ct 7,3b). Jesus nasce na matriz de Belém, Beit Lehem, a casa do pão. Alguém que deixe de comer sólidos acaba por morrer de inanição em uma ou duas dezenas de dias. Mas a matriz abdominal também precisa de líquidos.
Os líquidos representam um alimento mais sutil que os sólidos e, entretanto mais necessários. Se alguém é privado de líquidos, encontra a morte em poucos dias. Em lugares quentes e secos, como os desertos, a morte pode chegar a menos de 48 horas. Os órgãos responsáveis pela digestão e absorção dos alimentos são os mais expostos do corpo. Nenhum osso os protege, a não ser uma camada de músculos e gordura. O abdômen é sinal da exterioridade no humano.
Separado do abdômen pelo músculo do diafragma, a matriz peitoral é um território de emergência da consciência pessoal, mesmo se conduzida pelos impulsos e pulsões. O músculo do diafragma empurra as alças dos intestinos para baixo, de forma suficiente para garantir a expansão da árvore pulmonar e o funcionamento do coração. Ao fazê-lo, massageia-as de forma constante e suave, ativando as funções digestivas e facilitando as intestinais evacuadoras. Por isso, de forma análoga à visão da medicina chinesa, a víscera associada ao coração é o intestino, enquanto a bexiga associa-se aos rins.
Cercados por uma caixa, uma grade de costelas, estão o coração e o pulmão, principais aparelhos da matriz peitoral, que com o sangue são o essencial do sistema cardiorrespiratório. Menos expostos que os órgãos situados no abdômen, essa geografia torácica evoca simbolicamente uma maior interioridade no Ser.
Para viver, nossa matriz peitoral precisa de alimento gasoso, o ar. Treze a quinze vezes por minuto. Um alimento mais sutil do que os sólidos e líquidos, e mais essenciais. Alguém privado de ar encontra a morte em poucos minutos. É o território do coração e dos pulmões. Lugar de manifestação dos impulsos, das emoções e das pulsões. Em hebraico, ar,avir, pode ser reordenado como Bari, saúde, saudável. Respiração adequada relaciona-se com saúde adequada, adquirida das energias vitais oriundas do intangível. Para os místicos judeus, Deus, após ter criado a luz, or, introduziu na luz os elementos da letra iud e esta se converteu em ar, avir. Em sua ascensão no segundo estágio da Árvore das vidas, o humano naturalmente – que não significa sem conflitos – incorpora a matriz abdominal, devora-a com a placenta e migra para o calor e a dinâmica da matriz peitoral, território do sopro da palavra. Ele instaura e expões sua palavra, contra as palavras que lhe roubavam a voz. ’’Pois de palavras eu me sinto prenhe, impede o sopro de meu ventre. Em meu ventre, há como um vinho sem respiradouro, como odres novos prestes a explodir. Que eu fale, pois, para poder respirar. Abrirei os lábios e replicarei’’ ( Jô 32,18-20 ).
Os vínculos entre as duas respirações, a do ventre e a do peito, a inferior e a superior permanecem. Talvez nada ilustre melhor esse comando primordial do que a excreção da adrenalina pelas glândulas supra-renais, com sua riqueza de efeitos circulatórios, metabólicos, tonificantes etc. É na matriz peitoral que se realiza a unção dos catecúmenos, no rito do batismo. Um sinal de força energia para o combate dessa vida. A criança é tratada como um atleta de Cristo. Nem a fé, nem o batismo vão evitar o enfrentamento com o adversário, mas isso será um motor de crescimento da pessoa, fundada na energia e na força da seiva santificada de Cristo. Como diz uma das orações exorcistas, pronunciadas com freqüência nessa ocasião: que este óleo penetre até os pulmões! Que o Cristo te dê Sua Força!
É o que ocorre quando os filhos rompem com o útero familiar. Existe um dia- na juventude ou na idade adulta – em que filhos, netos ou irmãos encontram forças para deixar os familiares. Eles abandonam os entes queridos, afastam-se das práticas religiosas e de seus valores, recusam o convívio e o afeto que sempre compartilharam. É como se a pessoa se tornasse cega, muda e surda ao mundo que sempre a envolveu. Ela passa a ouvir seu coração, seu sexo e sua espécie. O doloroso abandono do lar, familiares e amigos é vivido no conflito, na solidão, na ameaça e até chantagem. Vive-se um incompreensível e absurdo esgarçamento do tecido familiar. As famílias vivenciam o momento de separação com dificuldade e lastimam a aparente perda de um ente querido como uma morte.
Como um estranho, desmemoriado, o jovem deixa a casa, vai viver fora, não se importa mais em rever os familiares, nem de participar de sua vida. Alguns pais recorrem a psicólogos, ao charme do dinheiro, a astrologia, quando não a polícia, para tentar re-haver os filhos. No desespero, tentam encontrar culpados dentro e fora da família. O desenvolvimento natural do adolescente e do jovem os leva a busca de si mesmos e ao encontro de seu Ser. Eles estão rompendo a matriz abdominal. Estão migrando para a matriz peitoral, mais interiorizada, sede do coração, da força de vontade e do desejo. Mas existem filhos, mesmo adultos, vivendo na dependência do envelope alimentar e afetiva dos pais. Outros vivem para comer e para beber. Morrem de comer e beber.’’Não sejas insaciável de todo prazer e não te lances sobre manjares(...) Muitos morreram das conseqüências de sua gula, mas aquele que toma cuidado prolonga sua vida’’ ( Sr 37,29.31).
Existem pessoas que vivem a matriz abdominal como uma totalidade. Outros contam com essa matriz até pós-morte dos pais, por meio de heranças e acesso a seus bens materiais.Outros ainda fundem-se de tal forma na vida familiar que não conseguem ver-se fora dela. Incapazes de amar fora da relação familiar mergulham num trágico destino fusional e estéril. Morrem simbolicamente ao lado dos pais, quando não são ‘’mortos’’, como os filhos de Netuno – na mitologia grega – mortos pelo próprio pai ao tentar violentar a mãe.
Uma etapa decisiva na caminhada do desenvolvimento familiar é a superação dos filhos e dos pais.Os filhos se tornam verdadeiros filhos quando partem em busca deles mesmos e abandonam o envelope familiar. O afastamento da família, da casa e até de Deus é aparente. Permitirá mais tarde um reencontro maior e melhor. Com o tempo, a matriz torácica dos desejos, dos impulsos, da vontade e da paixão cede lugar a uma matriz mais interiorizada ainda, a cerebral (Kéter). O trabalho de Ser, necessário para a diferenciação e a personificação do individuo, é eminentemente psicológico e espiritual. O envolvimento cego com os seus próprios fantasmas corporais e psíquicos também é longo e difícil de ser superado. O amadurecimento leva à revisão de vida, ao relacionamento amoroso e poético com os outros, à moderação e à medida.
Com o tempo e a santidade, muitos chegam ao abandono de tudo o que não está destinado à eternidade em cada um: desde seus corpos até os acumulas de conhecimentos, relações humanas e riquezas. São os chamados seres desenvolvidos, os sábios e as pessoas maduras. Liberadas de quase todos os envelopes e matrizes, elas vivem na vizinhança de seu próprio arquétipo. Estão cientes de seu verdadeiro nome, próximas do Ser, de sua absoluta unidade, alteridade e unicidade. Estão prontos para deixar a última e mais difícil das matrizes, a cerebral, sobre a qual voltaremos, no terceiro estágio do crescimento da Árvore das vidas, situado na cabeça (Kéter) .Essa ascensão se fará pela escada de Jacó do corpo humano, a coluna vertebral após terem circuncidado seus corações.
Fonte: Texto do Livro:CORPO TERRITÓRIO DO SAGRADO
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