Padmanabhan Krishna
A busca científica e a busca espiritual são as duas grandes investigações da humanidade. Porém, de algum modo desenvolveu-se um sentimento de que a ciência é antagônica à espiritualidade. Devemos examinar se isso é verdade ou se apenas damos à ciência e à espiritualidade significados muito estreitos.
A ciência procura a ordem no mundo externo de espaço, tempo, energia e matéria. A busca espiritual procura ordem em nossa consciência. Uma vez que a totalidade da realidade é constituída tanto de matéria quanto de consciência, por que a compreensão da ordem no mundo externo deveria ser antagônica à compreensão da ordem interna?
Se atentarmos para as suas origens, descobrimos que ambas as buscas originaram-se da curiosidade humana. Nós, seres humanos, investigamos aquilo que nos cerca, o que acontece dentro de nós e à nossa volta. Queremos observar e descobrir. Se perguntarmos o porquê, veremos que não há resposta. Somos inquiridores, simplesmente. O propósito é um subproduto, não o objetivo da investigação.
A tecnologia, por exemplo, é um subproduto da ciência, mas não sua razão de existir. A busca científica estava presente muito antes da tecnologia. Estávamos nos perguntando por que o Sol se levanta e se põe, por que as árvores crescem, por que há tantas espécies de vida na Terra, por que ocorrem os eclipses do Sol e da Lua...
Da mesma maneira, temos uma série de questões interiores. Quem sou eu? Qual o propósito da vida? Por que há tanto conflito dentro de mim? É possível alcançar um tipo de ordem no interior da minha consciência? O que é a morte? Existe alguma coisa além da morte? Todas são questões do campo da espiritualidade. As diferentes religiões organizaram-se em torno dessa busca.
Alguns grandes investigadores alcançaram uma certa verdade em sua consciência, uma certa ordem. Podemos chamar essa ordem de amor, compaixão, harmonia. Eles tentaram comunicar o que viram e tornaram-se líderes religiosos em torno dos quais se estruturaram as religiões. As religiões desenvolveram-se como um subproduto da busca espiritual, da mesma maneira como a tecnologia desenvolveu-se como um subproduto da busca científica.
A busca científica avançou muito, mas, quando se trata do entendimento de nós mesmos, de chegar a algum tipo de ordem em nossa consciência, a humanidade, como um todo, tem sido uma falha monumental. Com exceção de um punhado de pessoas como Cristo ou Buda, que podiam alcançar esse conhecimento por si mesmos, o restante da humanidade não o alcançou. Isso criou um desenvolvimento assimétrico na sociedade, o que, por sua vez, está criando uma enorme crise no mundo de hoje.
Estudantes da natureza
Uma das razões para a busca científica ter progredido tanto é porque há uma ordem tremenda na natureza. Ela segue um plano, trabalha de acordo com certas leis investigadas pela ciência. O cientista não sabe por que deve haver leis e por que elas devem ser universais, mas ele acha que é assim. Nós também não sabemos por que a natureza segue uma forma peculiar de lógica desenvolvida pelo homem, chamada matemática. O universo segue uma ordem que temos sido capazes de determinar, primeiro fazendo uso de algumas suposições fundamentais, depois utilizando a matemática e a lógica e derivando resultados.
Descobrimos que os resultados assim obtidos condizem com o que acontece na natureza, o que significa que, de algum modo, essa lógica opera na natureza. Podemos dizer apenas que tal é a natureza da ordem que se manifesta no universo. Somos estudantes da natureza, que nos deu uma consciência que pode observar e pensar. Através dessa consciência podemos descobrir algumas relações de causa e efeito, mas não podemos responder por que a natureza é da maneira que é.
Uma outra razão para a busca científica ter se desenvolvido tanto é o fato do observador estar, em grande parte, separado daquilo que é observado. Quando os meus sentidos estão vendo algo ou fazendo um experimento sobre um objeto observado, é relativamente fácil ser objetivo sobre o que estou vendo. Mas isso não acontece no mundo quântico das partículas elementares. Um exemplo é o elétron, para o qual o próprio ato da observação parece afetar o estado da partícula.
Na ciência, os erros humanos são detectados rapidamente porque as conclusões são testadas por outras pessoas. Dessa maneira a ciência tenta eliminar a subjetividade do observador. Quando chegamos à busca religiosa, estamos olhando para nós mesmos; o observador é o observado. Portanto, torna-se muito mais difícil ser objetivo. Se tentarmos, por exemplo, observar como adormecemos, nossa percepção diminui, porque no sono não somos perceptivos. A mente não pode observar a si própria adormecendo. Além disso, a ordem ainda não está presente na consciência; ela tem de ser descoberta, ao colocarmos fim à desordem.
Quando o conhecimento não ajuda
Na busca científica a nossa compreensão é cumulativa. O que Newton fez em toda uma vida nós podemos aprender em dois ou três anos de faculdade, e trabalhar sobre esse conhecimento para descobrir ainda mais. O conhecimento das pessoas que vieram antes de nós ajuda a prosseguir mais rapidamente e a ir além daquilo que foi descoberto.
Na busca espiritual, o conhecimento não é um elemento de auxílio. Na realidade, pode se tornar um empecilho, se a pessoa se apegar a ele. Eu posso ler aquilo que Buda descobriu e relatou, e alcançar o conhecimento do Budismo, incluindo tudo o que foi dito sobre Buda. Todo esse conhecimento faria de mim um professor de filosofia budista, mas um professor de filosofia budista não é o Buda! Não se pode descobrir a ordem que havia na consciência de Buda simplesmente através do conhecimento. O estudante do Budismo tem que observar e redescobrir o que o Buda descobriu, para ter acesso a essa ordem em sua própria consciência.
Não se pode simplesmente aprender essa ordem, como se fosse um conhecimento qualquer. É necessário algo além do conhecimento, um insight da verdade. Sem esse insight, que é uma percepção direta da verdade, não há alteração da consciência. Os insights também são essenciais no campo da ciência, mas somente para a primeira pessoa que descobre algo novo.
Se Einsten não tivesse tido um profundo insight sobre espaço, tempo, matéria e energia, sua mente não poderia ter entrado em contato com uma percepção totalmente diferente da física clássica. Sua mente tinha todo o conhecimento da física clássica, mas deve ter tido também uma certa quantidade de liberdade em relação ao que era conhecido, para ser capaz de ter um insight sobre a verdade que até então estivera totalmente fora do campo de conhecimento do homem.
Todas as grandes descobertas científicas resultam desses insights. Depois, o cientista coloca a descoberta sob a forma de uma equação, faz deduções e verificações lógicas; o fato é ensinado não através de insights, mas da lógica. A ciência não é repassada aos estudantes do modo como de fato aconteceu, mas através de caminhos lógicos, racionais.
O conhecimento e a lógica têm uma seqüência; o aprendizado dessa seqüência é suficiente, desde que funcione. Não é necessário ter um insight. Na busca espiritual ocorre o contrário: se não houver um insight, só há cinzas.
O problema dos seguidores
Do mesmo modo como houve grandes cientistas, como Einstein, Newton, Galileu, Darwin, etc, também houve grandes instrutores espirituais. As pessoas respeitam esses instrutores porque eles atingiram um certo estado de consciência, de amor e compaixão, uma consciência universal que não estava separada do resto do mundo.
Mas seus seguidores disseram: “Este homem é o nosso guru, nosso instrutor, nosso salvador, nosso líder, portanto vamos adorá-lo”. Propagaram suas palavras, desenvolveram um sistema, uma organização, uma igreja. Os seguidores não alcançaram a verdade; ficaram satisfeitos em propagar a palavra.
Suponhamos que os cientistas tivessem feito a mesma coisa; tivessem construído um templo para Newton e afirmado: “Nós somos newtonianos, Newton é o nosso líder, somente o que Newton disse é verdadeiro, e nós vamos propagar suas palavras.” Outro grupo poderia ter feito a mesma coisa com Einstein, dizendo: “Nós somos einsteinianos!”
Se isso tivesse acontecido, nós teríamos chamado essas pessoas de cientistas? Provavelmente, teríamos dito: “Vocês têm de estudar e descobrir a ordem na natureza, alcançar a compreensão e o conhecimento da ciência; somente então serão cientistas”.
Porém, no campo da espiritualidade nós temos sido muito crédulos. Se um homem usa certo tipo de roupa, executa um certo ritual e assim por diante, nós o aceitamos como um homem santo. Perdemos de vista o fato de que isso também é uma busca, uma investigação. A não ser que um ser humano alcance ordem em sua consciência, ele não é um religioso. Isso nada tem a ver com rituais, com a roupa, com as palavras que dizemos ou os livros que lemos. Não tem a ver com alguma habilidade ou conhecimento adquirido.
A busca religiosa não progrediu muito porque a interpretamos em termos de crença e prática de rituais, como se eles fossem nos trazer paz, nos levar a algo divino. Isso é uma ilusão. A adoração pode nos dar uma certa paz mental temporária, mas a mente será perturbada amanhã pela mesma razão por que foi perturbada ontem, porque as mesmas causas ainda existem. Se os problemas não se dissolverem na origem, a causa ainda estará lá, e é provável que o efeito também.
Obstáculos à busca
A crença é um fator que atrasou seriamente a busca religiosa. O que significa crença para um homem que busca a verdade? Temos que considerá-la do mesmo modo que um cientista considera uma teoria. A teoria não é a verdade, o modelo não é a realidade. Nós temos de fazer experiências para descobrir o que é verdadeiro.
Mas, quando o que temos é crença, estamos meramente aceitando algo sem evidência, o que tem pouco valor. O ato de rejeitar imediatamente uma idéia também não tem valor. A aceitação é tão falsa quanto a rejeição. É somente quando ouvimos e consideramos, quando vivemos a questão e a exploramos através de nossas observações, que podemos chegar a alguma verdade.
Outro fator que contribuiu para institucionalizar as religiões foram os códigos morais – o que é certo, o que é errado, o que fazer e o que não fazer. Devemos questionar se uma pessoa pode alcançar uma virtude apenas por meio da prática de ações virtuosas premeditadas. Uma ação particular, quando repetida, logo torna-se um hábito; a pessoa pode sentir-se virtuosa sem ter alcançado a virtude.
Essa é uma séria dificuldade da busca espiritual. Se eu sou agressivo, violento, colérico, posso praticar a não-violência. Posso projetar a idéia de que não-violência significa não bater em outra pessoa; assim, eu me refreio. Fico zangado, sinto vontade de bater nos outros, mas não bato, e acho que estou praticando a não-violência. No entanto, em minha consciência ainda há ódio, ainda há agressão. Eu apenas evitei a sua manifestação.
Só há não-violência quando a violência termina na consciência. Enquanto eu for intimamente violento e pensar que pratico a não-violência, estou praticando apenas controle. Todos esses mandamentos religiosos só levam ao autocontrole. Ele é necessário, mas não altera a consciência dentro de nós. O autocontrole jamais trará a compreensão e o fim da violência em nossas consciências.
A verdadeira virtude
A virtude é um estado da mente. Só há virtude quando termina a desordem. A violência, o medo, o ciúme, a possessividade são todos uma parte da desordem em nossa consciência. Não se pode impor ordem à desordem através de disciplina. Essa atitude ainda é parte da desordem; é apenas controle.
A necessidade de impor ordem surge apenas quando há desordem na consciência. Mas a ordem imposta é realmente desordem. A supressão é violência consigo mesmo; assim, a violência ainda está lá, e nada muda internamente. É claro que a ação externa conta, e que um certo grau de autocontrole é necessário, mas o fato é que não muda nada internamente. Ainda estamos em conflito quando estamos apenas nos controlando.
Se estivermos nos reprimindo, lutando contra nós mesmos, o que é controlado e sobrepujado num dia terá de ser controlado todos os dias, e isso significa que a vida será um campo de batalha. Não é vida espiritual estar constantemente em guerra consigo mesmo. Toda desordem tem uma causa; enquanto a causa existir, a desordem existirá. Portanto, a busca religiosa é uma investigação das causas da desordem em nossa mente.
Da mesma maneira que um cientista limpa os seus instrumentos e lentes para assegurar que eles não distorcerão sua observação dos fatos, o religioso tem de eliminar a desordem em sua mente, uma vez que ela é o seu instrumento de observação. A desordem é causada por ilusões, e as ilusões só terminam com a percepção direta da verdade. A busca espiritual é, por isso, uma busca de autoconhecimento, e a virtude é um subproduto dessa busca.
Uma abordagem universal
A melhor abordagem da espiritualidade independe de denominações, e, portanto, é universal, como a ciência. Assim como não existe uma ciência indiana ou americana, existe apenas uma mente religiosa: a que alcançou o amor, a compaixão, a paz, a harmonia. Não é uma mente hindu, cristã nem budista.
A mente verdadeiramente religiosa está em busca da verdade, que ela encara como desconhecida. A ciência também encara a verdade como o desconhecido, e continuamente purifica seus modelos na tentativa de se aproximar dela. É a nossa ilusão que nos divide em diferentes comunidades religiosas. As diferentes religiões institucionalizadas são subprodutos históricos da busca espiritual do homem e precisam ser distinguidas da busca em si.
Da mesma forma, precisamos distinguir a ciência do seu subproduto, que é a tecnologia. A ciência é a busca da verdade, enquanto a tecnologia resulta do desejo humano de poder e conforto. O uso indiscriminado desse poder criou todos os problemas ecológicos que o mundo enfrenta hoje. Eles são resultado da ganância e do egoísmo do homem; não se devem à busca científica em si. A humanidade precisa continuar com as investigações científicas e espirituais, sem se envolver demais com os seus subprodutos.
Investigações complementares
A busca espiritual e a científica são investigações complementares rumo à realidade. Qualquer sentimento de antagonismo é produto de uma visão mesquinha. A ciência lida com o mensurável; a religião, com o imensurável. Um cientista não é inteligente se nega a existência do imensurável. Nada há que seja anticiência, mas há muita coisa que está além da ciência. As duas buscas têm de andar de mãos dadas.
Precisamos entender as leis que governam os fenômenos do mundo, como também precisamos descobrir ordem e harmonia em nossa consciência. A compreensão humana está incompleta se não abarca ambos os aspectos da realidade: matéria e consciência.
Na verdade, a divisão é uma criação da mente. A realidade é indivisível, é tanto matéria quanto consciência. São os pensamentos que separam o mundo externo do interno, quase da mesma forma como a mente separa tempo e espaço, embora sejam, ambos, dois aspectos de um mesmo continuum.
Tanto o cientista quanto o religioso precisam estar muito atentos às limitações da mente para trancendê-las, se aspiram a uma percepção holística da realidade. A educação precisa estimular uma mente inquiridora, que seja tanto científica quanto religiosa, para enfrentar a crise da civilização moderna. Descartar toda investigação espiritual e todas as crenças religiosas em nome do secularismo é como atirar fora o bebê junto com a água do banho.
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